sábado, 10 de abril de 2010

Double John "Fantasy "

Double John "Fantasy" - Prefácio de Paulo Leminski sobre Pergunte ao Pó.

*c
A ficção norte americano do século xx jamais ocupou lugar especial no meu coração.

Para meu paladar, afeito às sutilezas culinárias da frase de Flaubert e aos seus súbitos abismos da prosa de Joyce, ela sempre me pareceu comercial demais, vulgar demais, rasa, " mal escrita" demais.
Comercial, ela é mesmo. Literatura, nos Estados Unidos, é negócio para dar dinheiro grosso. E sonho de escritor americano é levar vida de estrela de Hollywood, casa na Califórnia, piscina cercada de starlets, festas de arromba todos os sábados.

Esta aproximação que faço da literatura americana não é muito fotuita: boa parte da ficção ianque deste século foi escrita, um olho no papel, um olho na Metro- Goldwin-Meyer.
O próprio Fante escreveu muitos roteiros para filmes.
Meca e oásis dos narradores, o cinema, arte de massas, massificou a literatura norte americana: boa história é história que emocione milhões, emoções de seis milhões de dólares. Para isso, precisa ser médio. Trabalhar com emoções médias. O cinema proclamou uma idade média.
Uma linguagem média.

Para atingir o sucesso, não se pode violar demais as leis do trânsito linguístico, sintático, formal: não se estupra impublicamente o quadro de expectativas de sua Majestade o Público consumidor, novo rei deste absolutismo estatístico.

Nisso a ficção norte americana do século xx se parece com a soviética.

A " mediocracia" norte americana é ditada por razões do mercado. A soviética, por injunções ideológicas e pedagógicas, sujeitas à contínua atenção e intervenção do Estado e seus aparatos policiais." Incompreensíveis às massas" foi a frase que matou Maiakovski, o maior poeta da Rússia comunista. Essa frase mataria qualquer escritor americano, também.

Vulgar demais, a ficção americana também me parecia.

Sempre achei tediosa perda de tempo acompanhar aqueles registros minuciosos de gestos cotidianos, insignificantes, irrelevantes, banais, em que se compraz a literatura
do país mais rico da terra: aquela tentativa de flagrar " a vida como ela é", as coisinhas do dia-a-dia, a mera passagem da vida para as palavras, isso sempre me pareceu menor.

Fanático por Borges e Cortazár, literatura, para mim, como a pintura, para Leonardo da Vinci, sempre foi 'una cosa mentale", arquitetura de idéias: nunca um clique-clique-clique
fotográfico das irrelevâncias em que consiste isso que se chama vida.

" Mal escrita demais". Educado nas matemáticas cadências da frase de Flaubert, herdeiro das redondices e redundância rítmica de Bousset, os curto-circuitos da frase norte americana, seus cortes abruptos, afins à fala, descartesianos, a escrita de ficcionistas americanos sempre me pareceu, menos que um erro, uma imperícia.

Com tudo isso, foi surpresa encarar a barra de passar, pela primeira vez, à língua de Machado e Eça, as perguntas que este desconhecido John Fante fez ao pó, em 1939.
Tudo o que eu sabia é que era o escritor favorito de Charles Bukowski. Hoje, sei muito mais.
Retrato do artista quando jovem e tolo o bastante para se julgar o melhor escritor do mundo, ASK THE DUST abre um movimento complexo no interior do seu processo. Afinal, é a história das desventuras de álguem querendo ser um grande escritor: um relato sobre o próprio escrever, desvelando seu fazimento. Ao escrever ASK THE DUST, esse alguém o consegue: é uma double fantasy, uma dúplice ficção, FANTE/BANDINI, BANDINI/FANTE.

" Desventuras de alguém querendo ser", eis o tema da chamada novela picaresca, conceito derivado da literatura espanhola, onde o gênio cristalizou e produziu obras- primas, na passagem do renascimeno para o barroco: Vida del Pícaro, Guzmán de Alfareche ( 1599), de Mateo Alemán; Libro de entretenimiento de la pícara justina {(1605) de Francisco Lopes de Úbeda, historia de la vida del Buscón ( 1626), de Francisco de Quevedo: Estebanillo González ( 1646), de Estebanillo González, El diablo cojuello( 1641) de Velez de Guevara, tudo tendo começado com esse El Lazarillo de Torme( 1544), a proto-picaresca, de autor ainda discutido ( Hurtado de Mendonza?).

Muito elegante a história ao borrar o nome do autor da primeira picaresca: o herói de todas elas, não importa o nome, é sempre o "pícaro", figura típica da Espanha da época ( e de todas as épocas). O pícaro é, antes de mais nada, um desclassificado, indivíduo fora dos quadros de um grupo social, lonesome rider, sujeito isolado, contando apenas com sua astúcia, falta de escrúpulos e os acasos da fortuna para continuar vivo.

Um pilantra, em suma. Um marginal, misto de cínico com estóico.

A palavra parece vir do verbo " picar", "bicar": pícaro é o "bicão", o que não foi convidado para a festa, o batedor de carteiras e oportunidades, o personagem de moral provisória, adaptável a todas as novas situações de uma vida de de grande mobilidade, geográfica ou social. É um errante, sempre em trânsito, santo aqui, miserável ali, ora por cima, ora por baixo, se virando mais que charuto em boca de bêbado, para manter a a cabeça acima da maré de merda, a vida de quem rompe com os quadros tradicionais do seu grupo social de origem.
A picaresca é uma novela de baixa articulação, constituída do fluxo de anedotas, percalços e peripécias, sem maior nexo estutural, o fluxo que caracteriza a vida pícara. No final, sempre uma, e só uma, conclusão-moral-da-história: a vida é assim mesmo, e malandro que é malandro não chia.

Pícaro, no brasil, é o malandro, e picaresca é a malandragem, a atitudade mestiça e mulata de quem vive na fronteira entre dois mundos, e tem sempre que fazer o papel de agente duplo contra si mesmo, a plasticidade transformada em modo de vida.
Meio italiano, meio americano do Colorado, pobre de dinheiro mas forte do talento que acredita ter, anjo caído num hotel classe c da hollywodiana California dos anos 30, Fante é um pícaro, ASK THE DUST , um texto picarescamente entre a prosa e a poesia, perigosamente Pênsil entre a vida e o signo.
Traduzindo ASK THE DUST, me defrontei com um híbrido de prosa e poesia, o que eu não esperava.
O fluxo verbal da prosa de Fante é afetado por aquele grau de imprevisibilidade, a que associamos o nome de poesia. Só com técnincas narrativas, aliás, não teria atingido o agudo de pungência, docemente lírico e amaragamente cínico, que caracteriza sua narrativa, entremeada de ex-abruptos dramáticos, mas contidos.
E tem muita landragem por trás de suas (aparentes) simplicidades.
Fante, por exemplo, sabe usar uma corriqueira expressão indiomática, fazendo a ressoar seus 365 sentidos: uma escrita de "" vanguarda", que não parece de vanguarda, à primeira vista.
No ataque do capítulo dois, "i was twenthy then" . Claro: " eu tinha vinte anos na época". Mas e se fosse: eu era vinte na época? O chão do texto de Fante está todo minado de coisinhas assim, discretas malícias, finuras quase invisíveis, ambuguidades em meio tom.
Me espantaram também certas modernidades de escritura, nesse "romance" de 1939: liberdades de diálogos e transcrição de cartas.
Isso, claro, à luz da caretice geral da liberdade americana média, que teria entre nós, seu paralelo mais proximo em Érico Veríssimo, o maios norte americano dos nossos ficcionistas, não em Jorge Amado, muito menos em Guimarães Rosa.
Muita coisa, no entanto, me deixou de ser mistério desde que tropecei com o nome e a cegueira de Joyce, no capítulo dois, e no cartoze, onde Bandini fantasia os críticos dizendo do seu livro: "nothing like it since Joyce", superlativa fantasia beirando a paranóia. Com Joyce, estrangeiros da língua inglesa, um irlandês, o outro italiano, Fante compartilhava um traço comum marcante: a educação em colégio jesuíta, o catolicismo estranhado, explodindo em manifestações blasfemas, negado, mas sempre afirmado, obsessivo, através da própria negação.

Ulysses é de 1922. E as subversões e as transgressões desse grande irlandês, desde então, penetram no solo da ficção anglo saxã, como tinta na areia ( Virginia Wolf e William Faulkner que o digam).

O fantasma de Joyce, recitando o monólogo de Molly Bloom no final de Ulysses, atravessa ASK THE DUST, atropelando vírgulas, acavalnado frases, liberando as lógicas. ASK THE DUST, descubro, vem de uma das melhores famílias da prosa inglesa, a louca linhagem irlandesa que começa com Swift e Sterne e desága no desvario absoluto de Finnegans Wake, de Stephan Dedalus, à procura de um pai, nas ruas de Dublin. Assim como Arturo Bandini ( protótipo de Chinaski, persona de Buk) perambula, à procura da glória e da felicidade, pelas ruas de Los Angeles.

Ask the dust é um monólogo interior, invenção do frances Édouard Dujardin, em seus Les Lauriers Sont Coupés ( 1887), levada até as suas últimas consequências por Joyce, no Ulysses, 35 anos depois.

Que tal traduzir logo " os loureiros Estão cortados" e começar essa história desde o principio, talvez começando com as Confissões de Agostinho?

paulo leminski.



No final do livro, há uma especie de "Apêndice":



Espeficicações Técnicas

A prosa da ficção brasileira, afluente da francesa, corta as frases ( vírgulas, conjunções, travessões, dois pontos) de modo diverso da prosa anglo saxã( e americana).
Em Fante, isso é particularmente acentuado, pelo próprio caráter meio poemático de ASK THE DUST.
Onde teriamos, em português, uma série de virgulas, Fante coloca um and em lugar de cada virgula: "she was beautiful and warm and blond an all that..."
Muito caprichosa, para nossos critérios, a pontuação de fante.
Ele usa dois pontos mais de uma vez no mesmo período, o que, em português, somente as vanguardas fariam.
Alem de uma exuberante profusão de vírgulas, e até desse estranho ponto e vírgula que nem os mais astuciosos retóricos nunca chegaram a definir bem pra que é que serve.
Na tradução, procurei preservar ao máximo esta peculiaridade de registro material do texto de Fante, convicto que o pensamento é uma coisa material e que as singularidades de uma grafia são um modo de pensar.
Não abrasilerei, " fantesei" a língua portuguesa
Num particular, não deu: a transcrição de diálogos. A ficção de língua inglesa coloca " aspas" cercando as falas, onde nós, franceses, usamos os dois pontos, linha nova, travessão e fala.
Nisso, franco abrasilerei.

Traduzi ASK THE DUST sem ter lido antes.
foi traduzindo que fui lendo, frase após frase.
A supresa de cada frase, de cada episódio, de cada parágrafo, de cada mudança da fortuna, essa surpresa produzindo a energia para passar a frase ao português.

ASK THE DUST, pergunte ao pó.
ocorre, porém, que o verbo "to ask", em ingles, pode significar " pedir" : pedir o jantar. Por exemplo, "peça o pó"?
por fim, ask, ainda, significa "convidar"; "convide o pó".
esse pó de palavras que fante espalhou por tantas páginas.


John "Arturo Bandini" Fante, obrigado por Camila Lopez, por Vera Rivken, por Hellfrick, por Hackmuth, pela senhora Hargraves, por uma noite nas praias da califórnia, pelo terremoto, por uma história chamada "o cachorrinho riu", por todas essas bobagens em que consiste isso que se chama viver, e que, sem você, hoje já teriam virado pó.


Paulo Leminski, curitiba, junho de 84.

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